30 de abril de 2008

Nesga

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"Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois factos existe um facto,
entre dois grãos de areia,
por mais juntos que estejam,
existe um intervalo de espaço
existe um sentir que é entre o sentir...
... nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo,
que é a respiração do mundo;
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos
silêncio."
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Miguel Torga
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29 de abril de 2008

Coisas e tempo

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"As pessoas que tu vês
No meio das avenidas
Todas procuram assentos
Já nem ligam ao dia-a-dia.

Os mendigos que se escondem
Nas arcadas divididas
Fumando definitivos
Deitando contas à vida

E se alguém notar
A tua indiferença
Diz-lhes que o acaso
É mera coincidência

Não há ninguém como tu
Tão diferente"
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João Pedro Pais.

27 de abril de 2008

Andanças

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"Não sou capaz de descrever como tal aconteceu, nem que circunstâncias nos levaram até ali, mas o momento ficou-me para sempre gravado na memória.
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Descrevê-lo é revivê-lo, embora jamais permita que alguém o sinta da mesma maneira. (...)
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Há mundos que ficam fora do mundo dos comuns por estarem fora do conhecimento vivido pelo conjunto dos cinco sentidos."
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[In Um Minuto de Silêncio]
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26 de abril de 2008

Verde Norte

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"Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.
Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só de Teus olhares me purifique e acabe.
Há muitas coisas que não quero ver.
Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o Teu reino antes do tempo venha
E se derrame sobre a Terra
Em Primavera feroz precipitado."

Sophia de Mello Breyner

22 de abril de 2008

No fundo

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"Não são pepitas de ouro que procuro.
Ouro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesouro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto."
Miguel Torga, 2001.
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20 de abril de 2008

Embalada

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"O Anjo que em meu redor passa e me espia,
E cruel me combate, nesse dia
Veio sentar-se ao lado do meu leito
E embalou-me cantando no seu peito.
Ele que indiferente olha e me escuta
Sofrer, ou que feroz comigo luta,
Ele que me entregara à solidão,
Poisava a sua mão na minha mão.
E foi como se tudo se extinguisse,
Como se o mundo inteiro se calasse,
E o meu ser liberto enfim florisse,
E um perfeito silêncio me embalasse."
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Sophia de Mello Breyner, 1947.

18 de abril de 2008

Sombra

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"Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela ...
Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!"
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Olavo Bilac, 1865-1918, Brasil.